Sobre a modernidade do papel e Jane Eyre

Esse é o caderno bonito e surpreendentemente 
barato que comprei para usar de diário. E o preto
é o caderno de brinde que eu ganhei faz anos
que estou usando realmente por pena de usar 
o novo, porque sou dessas.

Estou de férias. O que você faz quando está de férias? Produz algo? Porque eu não, eu não faço é nada – ou quase nada. Para provar que eu sou capaz de passar um mês sem entrar em estado vegetativo (porque jogar Candy Crush no Facebook não conta), eu comprei um caderno. É, isso mesmo, comprei um caderno. Pra fazer de diário de novo, bem quarta série style. E daí é que vem parte da justificativa do título da vez. Quem se apavora e se preocupa com o futuro dos livros e da escrita cursiva em face do avanço da tecnologia (eu nem citei nada, mas aposto que você lembrou de alguma coisa) muito provavelmente nunca escreveu um diário na vida depois que saiu da preescola. Hoje em dia qualquer um pode abrir um blog, manter uma pastinha no computador, ou baixar um aplicativo no celular¹, mas você já comparou isso com escrever num papel? Mesmo com toda a paranóia de que alguém pode só abrir o caderno e ler a sua alma a qualquer momento, escrever à mão de madrugada ainda é mais reconfortante do que trancar tudo num aplicativinho do qual só você sabe a senha. Talvez aquela velha máxima de que quem escrever quer ser lido tenha alguma veracidade amarga, no fim das contas…

Metade dessas páginas aí estão ocupadas com todas as  minhas previsões falhas do primeiro livro que andei lendo nas férias: Jane Eyre. Fucking Jane Eyre.

Hora da resenha!
Como diz Heloísa Seixas no prefácio da minha ediçãozinha, esse livro foi feito por alguém que tinha muito tempo livre nas mãos. Publicado em 1847 por Charlotte Brontë, a irmã Brontë com o nome mais fácil de gravar e por isso a que eu jurava que era a de Morro dos Ventos Uivantes, Jane Eyre nos conta a história comovente e muitas vezes medonha e frustrante e confusa da jovem órfã que você nunca ia adivinhar: se chama Jane Eyre!! Conhecemos Jane ainda criança, e a partir daí acompanhamos a sua situação de estranha não bem vista na casa dos únicos parentes ricos que lhe restam e a sua ida, por fim, a uma escola de caridade de órfãs onde sua vida melhora mas não muito, porque algumas pessoas nasceram para penar na vida. Jovem adulta, vamos com ela para a grande e rica residência chamada Thornfield, (“porque os ingleses tem mania de nomear as propriedades?”, se perguntou um dia a garota que mora num prédio com nome. Cercado de prédios com nomes. E que conhece fazendas com nomes.) , onde Jane, em busca de uma vida melhor, embora não tanto no sentido convencional do termo, vai ser a preceptora (professora de rico) de uma garotinha chamada Adéle, a protegida do antipático Mr. Rochester. E aqui se foi metade do livro e nem um quarto de história.
Minha ediçãozinha e meu marcador do Keropi 

paraguaio que amassa as páginas.

E é muita coisa e muita história – quantas vezes eu, como leitora, posso apontar os pontos do livro em que parei e pensei “ei, eu to lendo a história da mesma Jane?”? “Isso não era uma história de romance?”, “Porque estou esperando uma vingança?”, e nas minhas partes favoritas, “OXENTE TO ASSISTINDO SUPERNATURAL?”! E olha que eu nem assisto Supernatural. Mais do que uma personagem ou narradora que nos apresenta o mundo, Jane é uma criaturinha vasta. Emil-ops, Charlotte criou em Jane alguém que muda e continua constante ao mesmo tempo, coisa possível somente aos seres humanos. Muitas vezes eu quis bater em Jane e chamá-la de antifeminista, mas aí 1847 me bateria em troca chamando Jane de feminista. Ela é feiosa, numa época em que pelo visto as personalidades das pessoas estavam estampadas nos traços de seus rostos, e insossa, do tipo que nunca seria imaginada como protagonista de nada por alguém que não tem acesso à sua cabeça. Jane se envolve num romance adorável (quer dizer…) com o também feioso, mas enérgico e carismático, Mr. Rochester. Eu, em 2013, por conta de certas reviravoltas da trama ainda não sei se desisti da idéia de jogar uma cadeira ficcional na cara do Rochester, mas 1847… Provavelmente está confuso quando a isso também. Deve ser admitido que é difícil querer julgar alguém depois que você pensa “E se fosse comigo?” e descobre que suas atitudes não seriam muito diferentes, se não piores. 
E minha condição de estudante de Letras, o que tem a dizer sobre Jane Eyre? Hahaha, que nunca que eu vou me meter em tentar falar sob pespectiva acadêmica de um clássico da literatura inglesa que todo mundo já falou e provavelmente escreveu, tire os cavalos da chuva! Mas esse realmente é o livro de alguém que teve o tempo de uma vida para escrever. As passagens são longas, as falas extensas, e o tempo pode ser desperdiçado. E esse foi um detalhe que me reconfortou ao longo do livro. Nada precisa ser cortado em troca da funcionalidade, se você não quiser. Nem toda a informação jogada no texto precisa ser útil ou recuperada mais tarde, com sua função revelada. Se escrever e parecer interessante, está bom. Além da paciência, a palavra religiosa está por todos os cantos do livro. Sério, quase virei cristã, só que não. A leitura de Jane Eyre foi para mim um lembrete da mudança de mentalidade ao longo tempo, que eu não sabia que estava e nem se estava precisando. E que a mudança do mundo não transforma um livro numa simples peça histórica. O mundo de Jane Eyre não é como o meu. Eu não sou Jane Eyre e não conheço nenhum Rochester. Eu não quero o que Jane Eyre quer e mesmo assim, a sua história de sobrevivência e amadurecimento emocional marca. Obrigada, Jane. 

Bernice corta o cabelo

Esta é, basicamente, a história do conflito entre uma recalcada e uma vagabunda que acham que a única coisa que vale no mundo é ter a atenção de um bando de garotos adolescentes caipiras. Esse conto foi escrito em 1922 e se passa, novamente, num círculo social de classe alta – mas não tão milionário quanto o do pessoal do Diamante do tamanho do Ritz.

Um dos focos desse conto é a dança: Logo de cara Fitzgerald joga a gente num baile, onde os velhos (ou melhor, as velhas) se divertem em condenar os jovens dançantes e os jovens se divertem sendo dançantes. O primeiro personagem a nos ser apresentado é Warren, um caipir-digo, jovem de dezenove anos apaixonado por Marjorie, a vagabunda já mencionada.

Sinal de vagabundice no caráter de Marjorie número 1:  Já é dito logo de cara que Marjorie usa e abusa da boa vontade de Warren do jeito que quer, e páginas mais tarde ela comprova o sinal número 1 fazendo Warren ir dançar com a sua prima que está visitando a cidade durante as férias escolares, Bernice A Recalcada.

Acontece que Bernice é chatérrima, e chatisse aqui é medida como a sua incapacidade de variar de parceiros nos bailes (Marjorie, é claro, dança com todo mundo). Mais tarde no conto e naquela mesma noite (acho) Bernice ganha uma boa noção de o quanto ela é chata quando passa pela porta do quarto da sua tia, a mãe de Marjorie, e se depara com o

Sinal de vagabundice no caráter de Marjorie número 2: Ela ouve sem querer querendo uma conversa entre Marjorie e a mãe em que Marjorie reclama sobre como Bernice é chata e ninguém gosta dela nas festas, e oh-meu-deus o que há de mais importante nessa vida do que chamar atenção dos outros (e com outros digo garotos) nas festas? Ugh, Bernice tinha mesmo é que voltar pra casa, aquela mestiça (sério).

Pois bem. Bernice vai pra cama com essa na cabeça, e de manhã, como ela ainda não tem o veneno no coração, ela confronta Marjorie sobre tudo que ouviu na noite anterior, e…

Sinal de vagabundice no caráter de Marjorie número 3:  Pelo menos a gente pode dizer que Marjorie é uma vagabunda corajosa, porque ela não retira nada do que falou e diz que Bernice tem mais é que se mandar mesmo. Bernice não vai por um motivo que na adolescência (e até mesmo depois) pega mesmo: Como é que ela ia explicar pros pais que voltou mais cedo das férias porque tomou um fora social? Ela então aceita ficar e elas decidem que Marjorie a ensinaria como ser uma vagabun-digo, como ser ousada e sagaz e moderna e consequentemente popular.

Uma dessas “dicas” é que Bernice podia muito bem dizer que ia cortar o cabelo¹ – e lembrem-se, estamos na década de 20 dos E.U.A, onde mulher de cabelo curto era o escândalo, moderno-até-demais. Bernice aceita e passar a, em vez de falar só do tempo e de dinheiro e de coisas chatas, espalhar pra todo mundo que vai cortar o cabelo e chamar todo mundo pra ver até o final das férias. E sabe o que mais?

Bernice se dá bem na nova vida de popularidade. Melhor que Marjorie, ela pega pra ela até o Warren, aquele Warren do início do conto (hahahaha se fode aê Marjorie)! E é aqui que vemos o….

Marjorie

Sinal de vagabundice no caráter de Marjorie número 4: Marjorie fica com ciuminhos da “nova” Bernice que sai por aí cantando Baba Baby (não) pra todo mundo, e decide pressionar Bernice a cumprir sua palavra e cortar mesmo o cabelo. Bernice, que ainda não tem tanto veneno no coração, cai nessa. E fica feia pra caramba, todo mundo detesta, e aqui nesse mundinho do conto não tinha essa de ser feio mas estar na moda – ela perde toooooda a popularidade (e a aprovação dos mais velhos porque ugh, cortou o cabelo!)

E o que Bernice faz, agora que chegamos ao final do conto? Dica: Leia!

Bernice no final do conto.

Uma coisa interessante que eu gostaria de apontar finalizando essa resenha é: Esse conto é de 1922, desde então o mundo mudou muito, mas quem é que lendo um conto desse em 2012 pode me dizer que nunca viu uma Marjorie ou uma Bernice na vida? Com esses dois contos Fitzgerald nos mostra que em alguns aspectos o mundo nem mudou tanto assim. E ainda falta um.

¹: O nome dela é Bernice e ela corta o cabelo. Curiosidade: http://en.wikipedia.org/wiki/Berenice_II

O exagero do tamanho do Ritz

Vamos lá, esse não vai ser um post de contos nem de poemas nem de nenhuma criação minha – não há tempo para outras criações quando se está atrasada no NaNoWriMo. Para compensar, a partir deste farei três posts seguidos (um em cada semana, acho) resenhando os três contos do livro O diamante do tamanho do Ritz e outros contos, de Francis Scott Fitzgerald.
Estou lendo Fitzgerald (porque até hoje eu lia o nome dele como Fitzergard?) e outro dia baixei todos os filmes do Hitchcock. Me sinto insuportavelmente cult. em minha defesa, eu queria algo pequeno para ler e achei o livrinho na estante dos meus pais. Agora, à resenha propriamente dita:

Dele, eu só tenho esse livro nas mãos, mas a partir daqui e de uma rápida lida na biografia dele, é fácil notar que vida de rico é o tema da obra de Fitzgerald. Aliás, vida de rico é o tema da vida de Fitzgerald, e O Diamante do tamanho do Ritz não é a exceção. Esse conto é a história do jovem John T. Unger, originário de uma cidadezinha provinciana lá pelas margens do rio Mississipi chamada Hades onde faz calor pra caramba (é, o nome é intencional) que vai estudar no Colégio St. Midas, um colégio de garotos ricos (idem para esse nome daqui). Lá, depois de algumas amizades um tanto quanto parasitas em que John vai e se aproveita da riqueza dos outros rapazes enquanto é infinitamente perguntando sobre o quão quente é Hades, ele conhece uma criaturinha meio distante chamado Percy Washington, e logo eles ficam amigos e John é convidado para passar as férias na casa dos Washington. 
É logo no caminho que o conto começa a tomar ares de filmes trash, e é só ladeira abaixo a partir daí, no melhor sentido de todos, é claro: No trem, Percy se torna comunicativo e conta a John como eles são ricos: o cara coleciona pedras preciosas em vez de selos e diz que a família tem um diamante do tamanho do hotel Ritz. O carro que leva os garotos para os únicos oito quilômetros não topografados dos Estados Unidos tem pedras preciosas nas rodas -e esses são os oito quilômetros não topografados dos Estados Unidos. Um pouco mais tarde na história é contada a história da riqueza dessa família: Descendentes diretos do próprio George Washington, o avô do Percy um dia perseguiu um esquilo montanha acima, e esse esquilo acabou largando no meio do caminho um pedacinho de diamante, que levou o vovô Washington a descobrir que a montanha em que eles estavam era toda feita de diamante – a montanha toda, um diamante só. Ele então fez riqueza e fez de tudo para que não descobrissem o seu segredo, incluindo matar o próprio irmão e construir no topo da montanha uma mansão com a mão de obra de um grupo de escravos alienados que não sabiam que a escravidão tinha acabado – grupo de escravos que se manteve até a época do Percy, a essa altura se comunicando através de um dialeto próprio. Não duvido nada que tenha gente até hoje tentando tirar Fitzgerald da cova para linchar o cadáver dele por causa dos comentários racistas dos personagens desagradáveis do livro. Independente de tais comentários refletirem a opinião do autor ou não. 
Enfim, de volta às loucuras do conto: e aí que quando chega na residência dos Washintgon John vive a paródia dos sonhos de consumo de todos os megalomaníacos do mundo, cercado de um luxo impossível e num estado quase torpe, sendo praticamente carregado da cama para a banheira e comendo em pratos de diamantes trabalhados com esmeraldas. Se você acha que tudo já está louco o suficiente, pegue o conto e leia até o final. O encerramento é, no mínimo, drogado. 
E todo esse exagero combinado um tipo de gente que nem é tão distante de realidade assim é genial. Fecho a resenha com a propaganda: Leiam!

E aproveitem e leiam também o conto da próxima resenha: Bernice corta o cabelo. Depois, acho que farei um post com um apanhado geral dos três contos, mesmo me sentindo uma péssima resenhista. Resenhista é uma palavra que existe, por acaso?

E se ainda tem algum leitor que não desistiu de minha vida, vale dizer que estou no meio das aulas teóricas da auto escola. Que coisa mais mórbida que é a auto escola, hein? Compreendo que isso deve ser parte de uma medida desesperada de conscientizar as pessoas a não fazerem calamidades no trânsito, mas não tem uma maneira de fazer isso sem mostrar tanta tripa humana não? Quando não é vídeo, é foto. Quando não é mídia, é contação de caso que aconteceu-com-um-conhecido-meu. E quando não é mórbido, é chato. Ai de mim se não fosse o NanoWrimo!